“NÃO DÊ ESMOLA”: uma campanha superficial, que estigmatiza e ignora soluções estruturais
Por Ricardo Vianna Hoffmann
Publicado em 06/11/2025 17:56 • Atualizado 06/11/2025 18:03
Justiça

Leitor, será que negar uma moeda no semáforo resolve um problema social tão profundo? Por que, afinal, as pessoas estão nas ruas? 

  As pessoas não estão na rua porque recebem esmola; elas pedem esmola porque estão na rua. Este artigo de opinião analisa criticamente a campanha “Não dê Esmola” e argumenta que não há dados concretos que comprovem que deixar de dar esmolas reduza a população em situação de rua. Prova disso é que, mesmo após sete anos de existência da campanha em Brusque, segundo os dados disponíveis, houve aumento no número de pessoas vivendo nessa condição. 

  Em vez de enfrentar as causas reais das pessoas em situação de rua, a campanha corre o risco de estigmatizar ainda mais as pessoas em situação de vulnerabilidade e de desviar o foco de soluções comprovadamente eficazes. A seguir, apresento dados atualizados sobre a população em situação de rua, tanto no Brasil quanto em Brusque, para que possamos refletir sobre por que a solução exige uma atuação muito mais ampla e integrada do que um simples gesto de não dar esmola. 

  Os gestores municipais, em parceria com diversas instituições e empresários, relançam a campanha iniciada em 2018, que na época trazia o lema: “Não dê esmola – Ajude a criar oportunidade”. Em 2025, a nova versão da campanha surge com um tom mais incisivo: “Não dê esmola – Seu dinheiro mantém as pessoas na rua”, propondo que a compaixão cristã seja negada em nome de uma suposta solução superficial e simplificada, para um problema social profundamente estrutural e complexo. 

  Na cidade de Balneário Camboriú/SC, lê-se, em um cartaz da campanha do governo municipal, a seguinte mensagem: “Esmola não muda vidas” e “Ligue 156 – RESGATE A VIDA BC”. 

  A palavra esmola possui uma origem histórica e simbólica profundamente ligada ao conceito de compaixão. [Etimologicamente, deriva do grego antigo ἐλεημοσύνη (eleēmosýnē), termo que significa “piedade” ou “misericórdia”, e que, no contexto cristão, passou a ter o sentido de caridade. Do grego, passou ao latim como eleemosyna ou eleemosina, sendo posteriormente transformada no latim vulgar em formas como elemosna e esmolna, até chegar ao português como “esmola”.]. 

  Contudo, com o passar do tempo, a palavra “esmola”, passou a carregar também conotações negativas ou pejorativas, sendo associado a práticas paliativas, humilhantes ou que reforçam a desigualdade estrutural, muitas vezes sendo interpretado como uma ação que mantém o pobre em sua condição, sem alterar suas causas reais. Assim, a palavra esmola carrega em si um duplo significado: a bondade da ajuda e, ao mesmo tempo, a crítica à sua insuficiência como solução social. 

  É comum ouvirmos o velho adágio popular: “Não dê o peixe, ensine a pescar”, assim como também já escutamos críticas aos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, sob a alegação de que “mantêm as pessoas na pobreza”. Chegamos a um ponto em que, recentemente, um deputado federal, Bibo Nunes (PL), do Rio Grande do Sul, afirmou: “Quem recebe Bolsa Família há mais de um ano não pode votar”, prometendo apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) [https://www.youtube.com/watch?v=GMa7s10EKMo]. Outro empresário, meu xará, afirmou, sem qualquer base científica ou respaldo em pesquisas, que “as pessoas estão viciadas no Bolsa Família”. Além disso, um empresário brusquense publicou, em sua rede social, que “as pessoas não querem trabalhar, pois preferem o Bolsa Família”. [https://www.youtube.com/watch?v=IjxoA4-JdPg]. Tais afirmações são meros achismos, sem qualquer fundamentação. 

  Pois bem, os dados demonstram justamente o contrário [leitor, pesquise]. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “a taxa de desemprego de 6,6%, registrada no trimestre encerrado em abril deste ano, é a menor para o período desde 2012.” Em abril do ano passado, por exemplo, essa taxa era de 7,5%” [https://agenciabrasil.ebc.com.br/tags/ibge]. 

  Observo, portanto, que a palavra “esmola” carrega tanto o peso da solidariedade quanto uma carga crítica, como o de uma ajuda que não resolve as causas estruturais da exclusão. 

  As políticas públicas de transferência de renda no Brasil possuem a seguinte trajetória: 

  O primeiro programa federal estruturado surgiu em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, com o Bolsa-Escola, que incentivava a frequência escolar de crianças em famílias de baixa renda. 

  No início de 2003, o governo Luiz Inácio Lula da Silva lançou o programa Fome Zero, com ações integradas para combater a fome, e, em 2004, consolidou os programas existentes na criação do Bolsa Família, que marcou profundamente a história social do país, promovendo a redução da pobreza, da fome e das desigualdades. 

  Na gestão de Dilma Rousseff, o programa foi ampliado com o Brasil Sem Miséria e o Bolsa Verde, focando também em famílias rurais e na preservação ambiental. 

  Em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro, o Bolsa Família foi extinto e substituído pelo Auxílio Brasil, que trouxe modificações e benefícios temporários, mas sem a mesma integração de políticas públicas. A falta de articulação entre assistência social, saúde, educação, habitação e trabalho resultou em um programa desconectado das redes locais, mais focado na dimensão financeira do que na transformação social. 

  Finalmente, em 2023, no atual governo Lula, o programa Bolsa Família foi recriado e fortalecido, mantendo o um valor mínimo de R$ 600 por família, que une assistência social, educação, saúde, moradia e trabalho, reafirmando o compromisso do Estado brasileiro com a proteção social das famílias em situação de vulnerabilidade. 

  No entanto, essa não é a reflexão que proponho neste momento. O que desejo, aqui, é convidar você, leitor, a refletir sobre a campanha: “Não dê esmola – Seu dinheiro mantém as pessoas na rua”. Vamos refletir juntos sobre o que está por trás dessa mensagem e sobre os caminhos que, de fato, podem transformar essa realidade? 

  A frase “Ajude a criar oportunidade”, utilizada na campanha de 2018, foi substituída este ano por “Seu dinheiro mantém as pessoas na rua”. A campanha foi relançada com o declarado objetivo de “quebrar o ciclo de pessoas vivendo nas ruas”, ou seja, pretende ‘conscientizar’ a população a não dar dinheiro (“esmola”) especificamente para pessoas em situação de rua, sob o argumento de que essa prática incentivaria a permanência nessas condições. 

  Pode-se interpretar ainda que a mensagem sugere que a oferta de esmolas seria um atrativo para que indivíduos optem por viver nas ruas, o que simplifica de forma equivocada uma realidade social complexa. 

  À primeira vista, a campanha pode soar como bom senso: em vez de dar algumas moedas, as pessoas seriam orientadas a encaminhar os moradores de rua aos serviços públicos. No entanto, uma análise mais profunda revela que essa abordagem é superficial e carece de evidências científicas de que efetivamente contribua para solucionar a complexa questão social das pessoas em situação de rua. 

  A Política Nacional para a População em Situação de Rua criada pelo Decreto nº 7.053/2009, tem como objetivo assegurar que esse grupo social tenha acesso facilitado, prioritário e desburocratizado aos serviços e programas das diferentes políticas públicas. 

  Na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976, do Distrito Federal, em 25 de julho de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que todos os entes federativos passassem a observar e cumprir as diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua. Entre as ações exigidas, está a elaboração de um plano de ação com mecanismos de monitoramento, voltado à efetiva implementação da política. [https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF976MC1.pdf] 

  O STF também estabeleceu a necessidade de produzir um diagnóstico atualizado sobre a realidade dessa população, bem como de criar instrumentos permanentes de acompanhamento e análise da situação da população em situação de rua no país. 

  Mais recentemente, a Lei nº 14.821/2024 instituiu a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua, com foco na geração de trabalho e renda, na capacitação profissional e na melhoria dos níveis de escolaridade. 

  A realidade da população em situação de rua. Antes de qualquer coisa, é preciso entender a dimensão e a complexidade do problema. O Brasil enfrenta um crescimento expressivo da população em situação de rua nos últimos anos. “Os dados recentes do Cadastro Único sugerem que este processo de crescimento segue em curso: entre agosto de 2022 e maio de 2024, a Pop Rua cadastrada aumentou de 198.101 para 293.807 pessoas”. 

  Em abril de 2025, a Agência Brasil, publicou em seu site, que, “o número de pessoas vivendo em situação de rua em todo o Brasil registradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) do governo federal, em março deste ano, chegou a 335.151. 

 No Brasil, o relatório demonstra que o CadÚnico registrou em março de 2025: 

 - 9.933 crianças e adolescentes em situação de rua (3%); 

 - 294.467 pessoas em situação de rua na faixa etária de 18 a 59 anos (88%); 

 - 30.751 idosos em situação de rua (9%); 

 - 84% são pessoas do sexo masculino.” 

 [fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-04/mais-de-335-mil-pessoas-vivem-em-situacao-de-rua-no-brasil?utm_source=chatgpt.com] 

  Hoje, mais de 2,3 mil municípios brasileiros (42% das cidades) já registram presença de pessoas em situação de rua, em 2015 eram 1,2 mil cidades (22%), o que mostra que a questão não se restringe aos grandes centros urbanos. Cidades médias e pequenas, como Brusque, também vivenciam essa realidade. 

  Vale destacar que esse número flutua, muitos estão de passagem pela cidade em busca de oportunidades ou auxílio. De fato, entre 2018 e 2022, cerca de 1.592 pessoas em situação de rua passaram pelos serviços de assistência de Brusque, embora nem todas permanecessem na cidade. Ou seja, Brusque é ponto de trânsito e atrai pessoas em vulnerabilidade de outras regiões, possivelmente pela imagem de cidade próspera e acolhedora. 

  Pesquisando o Jornal O Município de Brusque, ano de 2022, lê-se que, o abrigo temporário continua. Porém, a capacidade dessa estrutura é limitada. Conforme ofício da Secretaria de Desenvolvimento Social, havia cerca de 79 pessoas em situação de rua identificadas no município em um dado mês de 2022, das quais nem todas aderem aos serviços oferecidos, seja por estarem apenas de passagem ou por enfrentarem questões como dependência química que dificultam a permanência nos abrigos. 

  Esses números revelam um desafio complexo, de caráter dinâmico e multidimensional, que envolve pobreza extrema, desemprego, falta de moradia acessível, rupturas familiares, problemas de saúde mental e uso de substâncias, entre outros fatores. 

  Segundo reportagem do Jornal O Município (2025, p. 6), o número de pessoas em situação de rua em Brusque caiu mais de 60%. O jornal publicou os dados da Prefeitura de Brusque, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social, informando que, “em janeiro de 2025, havia 131 pessoas em situação de rua cadastradas na cidade. Atualmente, esse número caiu para 49, uma redução de 62,5%”. [não informa que cadastro é esse] 

  O secretário de Desenvolvimento Social de Brusque afirmou, na mesma matéria jornalística, que “estamos espalhando placas pela cidade para reforçar que a esmola pode, muitas vezes, perpetuar a situação de rua.” [Nessa fala, observei indícios de uma relativização quanto ao fato de que a esmola perpetua a situação de rua]. 

  Diante de um problema social tão complexo, a campanha “Não Dê Esmola” oferece uma resposta simplista: culpar a doação de moedas pela presença de pessoas em situação de rua. A tese central, explicitada nos materiais de divulgação e defendida por empresários, instituições e gestores públicos, leva a entender que as doações seriam diretamente responsáveis por “manter as pessoas na rua”. 

  Em Brusque, por exemplo, apoiador da campanha, afirmou que dar esmolas ou mesmo oferecer comida atrai mais pessoas em situação de rua para a cidade e que, cidades vizinhas têm adotado medidas duras e, com isso, “esses moradores de rua vêm pra Brusque. Daqui a pouco, se nós não cuidarmos, vamos ter 200, 300, 400 pessoas na cidade” (site: olhardovale.com.br). Esse argumento sugere que a generosidade do brusquense seria um “imã” de pobreza, e que ao fechar a torneira das esmolas, as pessoas em situação de rua desapareceriam das ruas. 

  O problema é que não há dados ou estudos que comprovem essa relação causal de forma consistente. Nenhuma evidência científica sustenta que campanhas para não dar esmola efetivamente reduzam o número de pessoas em situação de rua. Ao contrário, especialistas alertam que essa lógica inverte causa e efeito: as pessoas não estão na rua porque recebem esmola; elas pedem esmola porque estão na rua, sem alternativas de sobrevivência.  

  Uma análise publicada no Boletim do Instituto de Saúde identificou justamente esse imaginário nos discursos contra esmolas, a ideia de que a caridade é a vilã, mas trata-se de uma construção discursiva, não de um fato comprovado (site: periódicos.saude.sp.gov.br). Em outras palavras, é uma hipótese não embasada, repetida tantas vezes que ganhou ares de verdade, sem que se apresentem estudos sérios que a validem. 

  Pelo contrário, dados disponíveis contradizem a noção de que a esmola “sustenta” a vida na rua. Um censo feito na cidade de São Paulo mostrou que a maioria dos moradores de rua trabalha de alguma forma para obter renda, recicladores, carregadores, guardadores de carro, etc. Apenas 14% declararam depender exclusivamente de esmolas, e outros 15% combinavam pequenos trabalhos com pedidos nas ruas (site: vermelho.org.br). Ou seja, menos de 30% tinham na mendicância uma fonte de renda importante, enquanto dois terços conseguiam sobreviver sobretudo por meio de trabalho informal. 

  Esses dados desmontam o estereótipo da pessoa em situação de rua, realidade bem distante da vivência dura nas calçadas. Além disso, levantar uns trocados na rua dificilmente cobre todas as necessidades básicas (alimentação, higiene, abrigo); é um paliativo de emergência, não um “salário” (de R$ 3.000,00) confortável que prenderia alguém nessa situação. Cortar essa ajuda eventual, sem oferecer nada em troca, tende apenas a agravar a miséria diária dessas pessoas, empurrando-as a medidas desesperadas (como furtar comida ou ingressar em atividades ilícitas) para sobreviver. 

  Ademais, atribuir às esmolas a responsabilidade pelo aumento da população em situação de rua é ignorar as verdadeiras causas do problema. Trata-se de uma situação complexa, que não será transformada simplesmente porque o cidadão deixou de dar uma moeda no semáforo. 

  Reduzir um drama social complexo a um apelo comportamental individual (“não dê dinheiro”) é, na melhor das hipóteses, ingenuidade; na pior, uma forma de transferir a culpa pela situação, as próprias pessoas em situação de rua e a quem tenta ajuda-los, em vez de cobrar soluções das autoridades gestoras municipais. 

  Vale ainda questionar o impacto ético e simbólico de campanhas assim. Ao dizer à população para não dar esmolas, corre-se o risco de reforçar a aporofobia (aversão ou desprezo pelos pobres). Cria-se a impressão de que toda pessoa pedindo ajuda é preguiçosa ou “escolheu” estar ali, o que raramente corresponde à realidade. Leitor, faz-se necessário pesquisar cientificamente, em nossa cidade, as causas. 

  Iniciativas parecidas em outras cidades revelam esse viés. Em Londrina (PR), um projeto de lei para proibir esmolas gerou forte crítica de especialistas e entidades de direitos humanos. Experiências em países que tentaram punir quem pede ou dá esmolas, como nos EUA, Índia e França, não “resolveram”. Segundo o pesquisador Luiz Gustavo Duarte, tais propostas fracassam porque tratam as pessoas em situação de rua como causa do problema, quando na verdade elas são efeito de questões estruturais não enfrentadas pelo poder público (redelume.com.br). 

  Medidas assim enxergam a pessoa em situação de rua como ameaça à ordem, quase um criminoso por “degradar” o espaço público, quando na verdade ele está apenas tentando sobreviver mais um dia. 

  Recentemente, o governador do nosso estado, seguindo a cartilha populista de outros tantos prefeitos - [sim, leitor, a eleição se aproxima e a corrida pelo voto já começou], foi às redes sociais anunciar, em tom de palanque: “Tá todo mundo cansado de morador de rua que se disfarça de vagabundo para ameaçar e tirar a paz das pessoas de bem...” - [estabeleceu o inimigo e, com isso, semeou o medo na população]. Na sequência, bradou: “Determinei uma força-tarefa com as nossas polícias...” - [como se o problema fosse policial e não social; problema policial existe quando há crime e isso vale para qualquer cidadão, esteja ou não em situação de rua]. E continuou: “Quem invadir espaço público ou privado para montar barraca vai ser tratado como é: invasor... Se insistir em dormir no canteiro central, é invasor... Se precisa de ajuda médica, mas se recusa a aceitar, vai receber atendimento, mesmo que seja à força...” - [Estado autoritário em sua expressão mais cruel]. [https://www.youtube.com/watch?v=6bYufxcuEpg&t=14s]. 

  Criminalizar ou invisibilizar a pobreza e as pessoas em situação de rua não as elimina; apenas mascara sua existência. Ser ignorado, rejeitado e tratado como um incômodo público destrói qualquer traço de dignidade. 

  A hostilidade diária que recai sobre as pessoas em situação de rua não gera apenas desconforto, produz um abismo de desesperança, frustração e revolta. Sentir-se invisível, tratado como se não tivesse valor algum, é emocionalmente devastador. Não é apenas a fome, o frio ou a ausência de abrigo que machucam, é a exclusão social que corrói, que nega direitos, que apaga identidades. 

  Leitor, reflita comigo: imagine viver em uma cidade onde não há apoio, onde não existe rede de proteção, onde seus direitos são, todos os dias, violados ou ignorados. Viver assim é sobreviver sem esperança, sem perspectiva, à margem de uma sociedade que escolhe quem é visto e quem é descartado. 

  Caminhos para uma solução efetiva. Se não é pela proibição de esmolas que vamos resolver a questão, qual seria o caminho? Os estudiosos e exemplos bem-sucedidos em outras localidades apontam para soluções bem mais abrangentes e humanizadas, que atacam as causas reais e oferecem alternativas concretas às pessoas em situação de rua. Ou seja, exige-se uma atuação interdisciplinar, integrando políticas de moradia, saúde, assistência social, educação e trabalho, um esforço conjunto do poder público com a sociedade civil, setor empresarial e instituições de ensino. 

  O primeiro pilar de uma estratégia eficaz é moradia digna. Parece óbvio, mas muitas políticas tradicionais deixam a habitação por último, exigem que o indivíduo primeiro se recupere de vícios, arrume emprego, para só então “merecer” uma casa. 

  Pesquisas recentes e experiências internacionais demonstram que essa lógica deve ser invertida. Programas do tipo “Housing First” (Moradia Primeiro) mostram que oferecer imediatamente uma moradia estável à pessoa em situação de rua é o passo inicial mais eficaz para retirá-la dessa condição. 

  Com um teto e segurança, o indivíduo pode então estabilizar sua saúde física e mental, buscar qualificação e emprego com muito mais sucesso. Inspirado nessas evidências, o governo federal lançou em 2023 o plano “Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua”, [https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/governo-federal-lanca-201cplano-ruas-visiveis-pelo-direito-ao-futuro-da-populacao-em-situacao-de-rua201d-com-investimento-de-cerca-de-r-1-bilhao/copy2_of_V3_plano_acoes_populacao_de_rua1.pdf], que inclui o programa Moradia Cidadã nos moldes do Housing First. 

  Conheça o Programa Cartilha de Orientação Para Implementação do Projeto Moradia Cidadã [https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/cartilha-de-orientacao-para-implementacao-do-projeto-moradia-cidada]. 

  No âmbito da saúde, é fundamental expandir programas como os “Consultórios na Rua” (equipes de médicos, enfermeiros e psicólogos itinerantes), para levar atendimento a quem vive em situação de rua, muitos deles sofrem com transtornos mentais, dependência de álcool ou outras drogas, e doenças crônicas sem tratamento. 

  Sem cuidar da saúde (inclusive da saúde mental), é difícil reconstruir a autonomia dessas pessoas. Da mesma forma, a assistência social deve estar presente ativamente, com equipes de abordagem nas ruas identificando necessidades, ajudando na emissão de documentos, no reencontro com familiares quando possível e encaminhando para abrigos ou centros de atendimento. 

  Em Brusque, a equipe do Centro Pop realizava esse trabalho. Caso seja reativado, será necessário ampliar a equipe e buscar parcerias, quem sabe envolvendo voluntários capacitados de ONGs ou de universidades locais, por meio de projetos de extensão. 

  Outro eixo vital é a qualificação profissional e a geração de emprego e renda. Não basta tirar a pessoa da rua, é preciso criar meios para que ela se sustente amanhã com dignidade. Programas de oficinas de trabalho, frentes de serviço remunerado, cursos profissionalizantes e parcerias com empresas para contratação de pessoas em situação de vulnerabilidade podem fazer toda diferença na reinserção social. 

  Os empresários que apoiam campanhas como “Não Dê Esmola” poderiam contribuir de maneira muito mais efetiva: abrindo oportunidades de trabalho inclusivas, apoiando financeiramente projetos sociais, projetos de extensão das universidades e participações de fóruns intersetoriais para pensar soluções de longo prazo. 

  Caridade pontual, como doar comida ou agasalho, alivia o sofrimento imediato e não deve ser desencorajada quando existe fome e frio; mas solidariedade estruturada, aquela que se traduz em investimento social, em oferta de emprego, em formação e apoio contínuo, podem quebrar o ciclo da marginalização. 

  As Instituições de Ensino Superior podem realizar pesquisas e estudos locais para mapear o perfil da população de rua de Brusque (quem são? De onde vieram? Quais suas necessidades e potencialidades?), avaliar a efetividade das políticas implementadas e propor inovações. 

  Podem, igualmente, envolver estudantes de diversas áreas (serviço social, psicologia, medicina, direito, administração e outras) em projetos de extensão voltados a essa população, seja no atendimento direto, seja no desenvolvimento de tecnologias sociais (por exemplo, aplicativos de denúncia de locais onde há pessoas precisando de ajuda, sistemas de gerenciamento de vagas em abrigos). Conhecimento científico e engajamento comunitário devem andar de mãos dadas, pois soluções eficientes geralmente nascem de compreender a fundo a realidade local. 

  Por fim, é crucial ouvir as pessoas em situação de rua e incluí-las nas decisões sobre políticas que as afetam. Movimentos organizados como o Movimento Nacional da População de Rua existem para dar voz a essa população e precisam ser parceiros na construção das soluções. 

  Uma crítica frequente que eles fazem é que muitas políticas são pensadas “de cima para baixo”, sem considerar a opinião de quem vive na pele essa situação. 

  Em Londrina, o representante do movimento local contestou a narrativa de que moradores de rua “não querem trabalhar”: segundo ele, a maioria utiliza o dinheiro das esmolas para comprar comida, sustentar seus pequenos barracos e até famílias, e que se muita gente está pedindo é porque faltam políticas públicas corretas por parte dos governantes. Essa perspectiva reforça que ninguém está na rua por opção feliz, e que a solução passa por garantir condições para que possam sair dela. 

  Na minha opinião e, afinal, “opinião e umbigo tudo mundo tem”, entendo que, a campanha “Não Dê Esmola”, tal como apresentada, peca por simplificar em demasia um fenômeno social complexo. Ao focar no ato individual de dar moedas, ela ignora as causas profundas da situação de rua e não oferece soluções reais para quem se encontra nessa condição. Não há evidência de que endurecer com a esmola vá “resolver” o problema, na verdade, corre-se o risco de apenas torná-lo menos visível temporariamente, enquanto pessoas vulneráveis continuam sofrendo nas sombras. 

  É compreensível que a presença de pessoas em situação de rua cause incômodo e um clamor por respostas rápidas. Mas não podemos confundir repressão com solução. Campanhas superficiais podem até aliviar a consciência de alguns, mas não transformam o presente e não constroem o futuro. 

  Se Brusque deseja de fato enfrentar a questão das pessoas em situação de rua, deve fazê-lo com seriedade e humanidade, embasada em dados e boas práticas: ampliando serviços de acolhimento e moradia, fortalecendo a rede de saúde e assistência, criando oportunidades de educação e trabalho, e unindo esforços com entidades sociais, empresas e universidades. 

  A verdadeira conscientização que precisamos não é para negar ajuda, e sim para oferecer a ajuda certa, aquela que transforma vidas. Ao invés de afastar o olhar, estenda a mão de forma construtiva. 

  Brusque, assim como o Brasil, tem capacidade de enfrentar o desafio da população de rua se optar pelo caminho mais difícil, porém eficaz: o caminho da empatia informada, das políticas inclusivas e do compromisso coletivo. 

  Somente assim deixaremos de enxugar gelo com campanhas vazias e começaremos a derreter as estruturas da exclusão que deixam pessoas sem teto. Em suma, a solução exige mais solidariedade, uma solidariedade inteligente, organizada e perseverante, que ataque as raízes do problema e abra caminhos para que ninguém precise mais estar em situação de rua. 

  Para que a crítica aqui apresentada não se resuma a um exercício retórico, mas represente um compromisso com a busca de soluções reais e duradouras, é fundamental que o município de Brusque dê um passo além e invista na criação de uma comissão intersetorial de estudo, pesquisa e ação, reunindo representantes do poder público, das universidades, das instituições de assistência social, de organizações da sociedade civil e do setor empresarial. 

  Caberia, a essa comissão, realizar diagnósticos aprofundados sobre a população em situação de rua na cidade. Também seria essencial que esse grupo promovesse pesquisas comparadas, investigando políticas públicas bem-sucedidas em outras cidades e países, de modo a adaptar boas práticas à realidade local. Com base nesses dados, a comissão poderia elaborar um plano municipal de enfrentamento à situação de rua, integrando ações nas áreas de moradia, saúde, assistência, formação e trabalho, com foco na inclusão social e na restauração da dignidade humana. 

  Brusque precisa escolher: seguir fingindo que a questão das pessoas em situação de rua se resolve com publicidade, slogans e não dar esmolas ou encarar, com coragem, empatia e responsabilidade, as verdadeiras causas dessa condição social. 

 Quer compreender mais sobre este tema? Sugiro as leituras de Povo de Rua, de Maria Lúcia Lopes da Silva, editora Cortez, Atendimento à população em situação de rua, por Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro e outros, e Relatório da População em Situação de Rua, link: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/relat_pop_rua_digital.pdf. 

 Além disso, clássicos como Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, nos ajudam a entender o peso da exclusão social que ainda atravessa o Brasil, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Uma narrativa sobre migração, fome e miséria que, embora ambientada no campo, reflete os processos que empurram milhares para as ruas das cidades. 

 Referências: 

 AGÊNCIA BRASIL. Ipea: população em situação de rua no Brasil supera 281 mil. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-02/ipea-populacao-em-situacao-de-rua-no-brasil-supera-281-mil. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 AGÊNCIA BRASIL. Taxa de desemprego é a menor para o período desde 2012. Agência Brasil, 31 maio 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-05/taxa-de-desemprego-menor-para-o-periodo-desde-2012. Acesso em: 20 jun. 2025. 

 AULETE DIGITAL. Esmola – Significado e Etimologia. Disponível em: https://www.aulete.com.br/esmola. Acesso em: 8 jun. 2025. 

 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. População em situação de rua: diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registros administrativos e sistemas do Governo Federal. Brasília: MDHC, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/relat_pop_rua_digital.pdf. Acesso em: 24 jun. 2025. 

 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Cartilha de orientação para implementação do Projeto Moradia Cidadã. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/cartilha-de-orientacao-para-implementacao-do-projeto-moradia-cidada. Acesso em: 18 jun. 2025. 

 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Plano Ruas Visíveis: pelo direito ao futuro da população em situação de rua. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/governo-federal-lanca-201cplano-ruas-visiveis-pelo-direito-ao-futuro-da-populacao-em-situacao-de-rua201d-com-investimento-de-cerca-de-r-1-bilhao/copy2_of_V3_plano_acoes_populacao_de_rua1.pdf. Acesso em: 18 jun. 2025. 

 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua. Brasília: MDHC, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh. Acesso em: 8 jun. 2025. 

 BRASIL INVESTE em programa de moradia primeiro. Revista Pesquisa Fapesp, 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/brasil-investe-em-programa-de-moradia-primeiro/. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976 (DF), Relator Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, 25 jul. 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF976MC1.pdf. Acesso em: 23 jun. 2025. 

 BRUSQUE MIL GRAU. Proposta quer regulamentar ruas e conter avanço de moradores em situação de rua. 2025. Disponível em: https://brusquemilgrau.com.br/proposta-quer-regulamentar-ruas-e-conter-avanco-de-moradores-em-situacao-de-rua/. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 DEPUTADO DE EXTREMA-DIREITA QUER QUE BENEFICIÁRIOS DO BOLSA FAMÍLIA NÃO TENHAM DIREITO A VOTO. [vídeo online]. YouTube, 19 jun. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GMa7s10EKMo. Acesso em: 23 jun. 2025. 

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 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 

 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Nota Técnica: Estimativas da população em situação de rua no Brasil (2012–2022). Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br. Acesso em: 8 jun. 2025. 

 IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Análises situacionais e retrospectivas sobre a população em situação de rua no Brasil. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/16822/1/RI_Analises_situacionais_e_retrospectivas_populacao_em_situacao_rua.pdf. Acesso em: 9 jun. 2025. 

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 O MUNICÍPIO. Brusque tem mais de 1,5 mil pessoas em situação de rua identificadas; saiba como são atendidas. 2023. Disponível em: https://omunicipio.com.br/brusque-tem-mais-de-15-mil-pessoas-em-situacao-de-rua-identificadas-saiba-como-sao-atendidas/. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 O MUNICÍPIO. Saiba por que o Centro POP de Brusque está com atendimentos temporariamente suspensos. Brusque, 15 maio 2024. Disponível em: https://omunicipio.com.br/saiba-por-que-o-centro-pop-de-brusque-esta-com-atendimentos-temporariamente-suspensos/. Acesso em: 18 jun. 2025. 

 OLHAR DO VALE. "Eu peço para a população que não dê esmola", diz Luciano Hang em reunião sobre moradores em situação de rua em Brusque. 2025. Disponível em: https://olhardovale.com.br/eu-peco-para-a-populacao-que-nao-de-esmola-diz-luciano-hang-em-reuniao-sobre-moradores-em-situacao-de-rua-em-brusque/. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 PRIBERAM. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: Esmola. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/esmola. Acesso em: 8 jun. 2025. 

 REDE LUME. Proibir esmolas não resolve problema da mendicância, dizem especialistas. 30 jan. 2025. Disponível em: https://redelume.com.br/2025/01/30/proibir-esmolas-nao-resolve-mendicandia/. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 SÃO PAULO (Estado). Sua esmola também mata. Boletim do Instituto de Saúde – BIS, 2024. Disponível em: https://periodicos.saude.sp.gov.br/bis/article/view/40002. Acesso em: 9 jun. 2025. 

 TV FÓRUM. Véio da Havan e Rei do Ovo culpam o Bolsa Família por falta de trabalhadores; escravidão? YouTube, 18 jun. 2025. 7 min 39 s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IjxoA4-JdPg. Acesso em: 23 jun. 2025. 

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